terça-feira, 25 de agosto de 2009

Doenças atacam cortadores de cana e suas famílias

Coluna, depressão e alcoolismo:
os males da cana no Vale do Jequitinhonha
Trabalhadores e parentes adoecem devido ao esforço físico inadequado na árdua tarefa nos canaviais, na lavoura e em função das provações causadas pela separação da família.

Um trabalhador do Vale do Jequitinhonha retornou antes da hora do corte de cana em São Paulo com problemas mentais. “Ele surtou, não agüentou”, avalia o psicólogo Lincoln Campos Vieira, coordenador do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em Minas Novas, a 493 quilômetros de Belo Horizonte. Conversando com o trabalhador, o psicólogo descobriu o que desencadeou a doença: ele tinha trabalhado calçando uma bota dois números menores que seu pé. “Há casos em que a pessoa já tem um distúrbio que ‘acorda’ quando ela passa por determinada provação”, explica. Há muita provação para essa gente. Além do trabalho rude no corte da cana, continuado e eventualmente sem folgas, há mudanças culturais, distância de casa, preocupação com a sobrevivência da família durante a ausência do provedor e o uso de substâncias como álcool.
A partir da observação de problemas como esse, autoridades de saúde da região começaram a notar outras conseqüências da migração dos homens para os canaviais: seus familiares passaram a apresentar problemas de coluna, depressão e alcoolismo. Com a ausência do homem adulto durante até oito meses por ano, mulheres e crianças ficam obrigados ao trabalho duro, como carregar peso e capinar. “Nunca vi região com níveis de alcoolismo entre as mulheres como aqui”, observa o psicólogo.
“Os homens voltam doentes e as mulheres que ficam adoecem também, assim como as crianças”, diz a secretária executiva do Consórcio Intermunicipal de Saúde do Médio Jequitinhonha (Cismej), a assistente social Maria de Jesus Loredo Rocha, a Zuzu, ao salientar que já se foi o tempo em que a preocupação maior era com as condições de trabalho do cortador de cana. “As implicações são diversas e não temos que olhar apenas a questão trabalhista. É simplista demais”, denuncia Zuzu, que vive há 20 anos em Araçuaí.
Mulher no trabalho pesado
Na comunidade quilombola de Mocó, em Berilo, Sanete Esteves de Souza, de 36, tem oito filhos menores de 16 anos para cuidar. Os mais velhos já ajudam na lida quando o pai Domício Cassimiro de Assis, de 35, está fora. Por causa das dificuldades físicas, ele não corta mais cana e, por isso, procura trabalhos menos pesados. “Aqui, de junho a dezembro, é a mulher que faz o trabalho pesado”, conta Sanete, que conseguiu se formar na oitava série no ano passado e sonha em ser advogada, principalmente para lutar pelos direitos de sua comunidade. Ela lamenta que não havia lei que obrigasse os pais a mandar os filhos à escola quando era menina. E também o fato de não haver facilidades para ir à escola. “Fui criada fazendo o serviço pesado e quero que meus filhos cresçam numa comunidade melhor”, afirma.

Por precisão, Maria Rosa Mendes de Souza, a Rosinha, de 40 anos, trabalha desde os 14 capinando roças. O marido sempre trabalha fora, buscando renda, e deixa por sua conta as tarefas da casa, na comunidade de Campo do Buriti. Ela limpa ainda o terreno de outras pessoas, para ganhar algum dinheiro. A conseqüência do trabalho pesado, que exige uma postura correta, ela sente na hora de dormir. “Minha coluna é que atrapalha, porque dói muito à noite”, diz. Ela e a filha mais velha, Sirlene Lopes de Souza, de 21, são exemplos típicos de mulheres do Vale do Jequitinhonha que fazem o serviço “de homem” enquanto os maridos migram. “Ajudo minha mãe desde que me entendo por gente”, diz a moça.

As duas estão empenhadas em capinar o milharal e comemoram o fato de a chuva ter amaciado a terra, o que não torna o trabalho menos rude, e acham natural fazer o trabalho na ausência dos homens. “Temos que dar uma força porque não dá para pagar um camarada. Todo mundo tem que saber que as mulheres são lutadoras da roça”, diz, referindo-se ao fato de que o esforço feminino no Jequitinhonha não é reconhecido. Mas essa luta tem conseqüências. No banco em frente à clínica de fisioterapia de Minas Novas, cinco mulheres aguardam o início do expediente para o tratamento. A mais nova tem 44 anos e a mais velha, 92 anos. Todas têm a mesma dor: na coluna.

Esta reportagem foi realizada por Maurício Lara, para o Estado de Minas, 02/03/2008.
Continua muito atual.

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