domingo, 21 de agosto de 2011

Mudanças no jeito mineiro de fazer política

Mudanças no jeito mineiro de fazer política
Por Rudá Ricci
1. A tradicional política mineira
A política mineira começa a mudar. Vivo há 20 anos nessas terras, migrante de São Paulo, e já confessei algumas vezes que não conseguia entender o jeito mineiro de fazer política. Demorei quase uma década para compreender sua lógica. Porque por aqui não se faz política à luz do sol. O mundo privado contamina todos discursos e práticas. Por este motivo, nem sempre os atos públicos mais efervescentes revelam o real peso político e dinâmica dos atores sociais. Quem não é mineiro não entende os motivos de quem tem visibilidade, não raro, perder uma eleição. Como explicar os motivos do ex-Ministro Patrus Ananias dirigir o programa mais exitoso e com maior impacto eleitoral do governo Lula e acabar no ostracismo?

Desde que me instalei no interior das montanhas mineiras fui compreendendo que aqui se faz uma política feminina. Muitas feministas me disseram que esta análise pode indicar uma naturalização do comportamento político das mulheres. Mas esta nunca foi minha intenção. O que procurava afirmar é um “tipo ideal”, ao estilo weberiano, um recurso didático para diferenciar práticas que, como o nome sugere, é uma idealização. Weber já alertava para as ressalvas no uso deste recurso: muitas vezes, os tipos ideais se embaralham na prática social. Mas o recurso auxilia a compreender elementos que compõem a lógica política.

Homem cuida da política, mulher da família
O que seria, então, feminino na prática política mineira? Primeiro, entendamos a tradição econômica. Em vários ciclos econômicos mineiros – mas o mais importante parece ter sido o fluxo dos tropeiros – as mulheres ficavam meses administrando sua família.
No Vale do Jequitinhonha até hoje se ouve falar das “viúvas de maridos vivos”. O último ciclo que provocou tal diáspora foi o da cana-de-açúcar que atraiu tantos homens para a colheita na região de Ribeirão Preto, a Califórnia Brasileira, durante ao menos seis meses no ano.

Lembremos, ainda, da lógica muito recente do mineiro migrante. A capital mineira possui 114 anos somente e provocou um forte fluxo migratório para toda região metropolitana, transferindo funcionários – e, logo depois, suas famílias – de Ouro Preto. Há registros que até hoje os hábitos alimentares de alguns municípios desta região (caso de Betim) são fortemente marcados pela cultura rural, interiorana. Não por outro motivo, os jornalistas e literatos mineiros mais conhecidos não residiam ou residem em seu Estado de origem. Os mineiros, em especial os homens, sempre se viram enredados em processos migratórios.

Por este motivo, por essas bandas se fala, ao pé do ouvido, de tantos homens que possuem mais de uma família. E, em vários casos, todos se conhecem.

Daí a mulher ter uma presença no mundo privado extremamente destacada. Sempre foi a chefe de fato das famílias. O que gerou uma adaptação ou mutação do machismo brasileiro.
Em terras mineiras, são os homens que comandam a vida pública. Mas as mulheres possuem um forte domínio na vida privada. A violência doméstica permanece como no restante do país.

Mas à mulher cabe uma voz ativa em relação ao cotidiano familiar e até mesmo às escolhas de investimento. Esta foi uma das surpresas quando iniciei minhas pesquisas no meio rural mineiro. Sempre que perguntava sobre os projetos de investimentos, o pretenso chefe da família convidava sua esposa para responder. Em todos estratos sociais rurais a situação se repetia. Ouvi da esposa de um ex-Secretário Estadual da Agricultura que ela tinha orgulho de ser fazendeira. Mandava com orgulho. E o marido, ao lado, quieto.

Ora, não há como negar que esta proeminência contribuiu para a formação de muitas gerações de homens que se projetaram na vida pública, espaço interditado pelo peculiar machismo mineiro.

A política mineira é claramente marcada por esta lógica que nasce da dinâmica familiar. A ação predominante é particular, privada, com conversas e acordos reservados e ausência de violência ou agressão direta e pública entre adversários. Ao contrário, o chiste, o espaço para recomposição, a guerra de posição parecem os elementos centrais desta prática.

Territorialização política
Assim, um segundo elemento central da política mineira, decorrente desta lógica e tradição é a feudalização territorial e as reservas políticas. A máxima “Minas são muitas” orienta esta lógica. Minas se recorta em lógicas distintas, econômicas, sociais e culturais. Do Cerrado ao oeste do agronegócio, do sul paulista à Zona da Mata fluminense, do norte e nordeste incorporado à dinâmica nordestina, do núcleo siderúrgico do Vale do Aço à região metropolitana de BH.
São regiões compartimentadas que criam uma federalização em muitos casos próxima da estrutura espanhola. Obviamente que a política assumiu os mesmos contornos culturais. Aécio Neves aprofundou esta concepção e estruturou seu staff político a partir de eleitos e emissários regionais. Daí a liberdade que tinha para anunciar apoios públicos que não se realizavam de fato nas regiões, dada a orientação contrária para que os seus emissários se mobilizassem nos acordos territoriais.
As eleições de Lula e Dilma Rousseff, não por acaso, foram ancoradas, em Minas Gerais, pelos comitês “Lulécio” (Lula e Aécio Neves) e “Dilmasia” (Dilma e Antonio Anastasia), em campanhas semi-públicas casadas para Presidência da República e Governo Estadual.

A prática dos deputados estaduais segue a mesma orientação, independente da agremiação. Em Minas Gerais, mais que em qualquer outro Estado da federação, deputados esquadrinham seu campo de atuação e os prefeitos a ele vinculados. Prefeitos, por sua vez, se articulam com deputados de diversos partidos que tem em sua região um eleitorado cativo. A territorialização cria, assim, uma lógica e hierarquia política peculiares, que transversaliza partidos e supera ideologias.

Cultura do planejamento
Um terceiro elemento de tradição da política mineira é a cultura do planejamento. Parece uma contradição com as características anteriores, de tipo pós-moderno. Este, não por acaso, é um tema recorrente nas pesquisas acadêmicas mineiras: a relação entre tradição e modernidades. Trata-se do hibridismo mineiro, a entrada da modernidade que se sobrepõe às tradições da fragmentação mineira. Alguns chegaram a trabalhar estilos dicotômicos que se complementam (paradoxalmente) intitulados como mineiridade (moderno e ousado) e mineirice (tradicional e matreiro).

Na esteira da modernidade é possível destacar, na tradição da política mineira, o papel do Colégio Caraça, constituído a partir dos padres lazaristas. Afonso Pena e Artur Bernardes estudaram neste colégio afastado de tudo, no alto de uma serra. Muitos de seus alunos se elegeram governadores, senadores e deputados, além de altas autoridades eclesiásticas. Ainda no século XIX, o colégio foi visitado por dom Pedro I e Dom Pedro II. Em 1968 o colégio foi incendiado e só foi restaurado em 2002, perdendo a projeção que tinha na formação da elite política mineira. Mas a concepção desenvolvimentista e humanista já estava lá registrada.

Também merece destaque a fase logo após a II Guerra Mundial em que o governo estadual mineiro inaugurou a fase de planejamento induzido pelo Estado. No governo Milton Campos (1946-1950) lançou o modelo desenvolvimentista com o Plano de Recuperação Econômica e Fomento da Produção. O mais conhecido governador que assume esta orientação foi Juscelino Kubitschek, base para, mais tarde, formular o Plano de Metas. O fato é que nas décadas de 1950 e 1960 os governos mineiros procuraram organizar a intervenção e orientação da sua economia, focado no fomento do crescimento industrial acelerado.
Nos anos 1970 vieram os Planos Mineiros de Desenvolvimento Econômico e Social (PMDES). O primeiro, de 1970, durante o governo Rondon Pacheco. O segundo, durante a gestão Aureliano Chaves. E, finalmente, o terceiro, implantado pelo governo Francelino Pereira. Tancredo Neves e Newton Cardoso também elaboraram seus PMDES, mas já sem a ênfase numa lógica sistêmica de desenvolvimento e planejamento.

A crise mundial que se irradiou no final dos anos 1970 e impactou os investimentos externos no Brasil foram corroendo este modelo mineiro de intervenção estatal fortemente orientado pelo intervencionismo e no dirigismo.

Contudo, todos estes traços da cultura política mineira se alteraram nos últimos oito anos. Gradativamente, como convém aos mineiros.
A continuidade desta análise será publicada amanhã.
Rudá Ricci é sociólogo, cientista política, doutor em Ciências Sociais. professor da PUC MG. Publica o Blog De Esquerda em Esquerda, de onde foi retirado este texto.

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