segunda-feira, 31 de março de 2014

O Direito à vida pública, por Rudá Ricci


O DIREITO À VIDA PÚBLICA
Rudá Ricci, para o CRESS/MG

Um dos autores liberais mais festejados nos últimos anos foi o economista indiano Amartya Sen. Sua tese fundamental é que o desenvolvimento de um país está vinculado às oportunidades que ele oferece à população de fazer escolhas e exercer a sua cidadania, o que inclui a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e educação, como também segurança, liberdades básicas, habitação e cultura. Sen vincula de maneira original a noção de liberdade ao conceito de desenvolvimento como sendo, simultaneamente, um processo e uma oportunidade. Introduz a noção de cidadão como “agente” e define a pobreza e o desemprego como “privação de capacidades básicas”[1].
O autor indiano é, até hoje, referência para organismos internacionais. Sua definição cabe como uma luva para compreendermos como, mesmo para aqueles que se apoiam no liberalismo e, portanto, na defesa da propriedade privada e da liberdade de mercado, o que se passa nas cidades brasileiras é amplamente reprovável, como privação das capacidades básicas da vida humana.
O modelo de desenvolvimento em curso, de forte inspiração rooseveltiana promoveu nos últimos anos a nacionalização de políticas de infraestrutura repetindo os erros do passado. Crescemos sem planejamento, ao bel prazer dos gestores locais que acessavam convênios para demonstrar influência e capacidade gestora. Com 65% do orçamento público concentrado na União, é fato que os municípios deixaram de ter capacidade de investimento autônomo e se transformaram em gerentes de programas federais. Contudo, a lógica de implantação dos programas de desenvolvimento urbano foram, desde o início, excludentes e promoveram uma ciranda que movimentou grandes empreiteiras e especuladores imobiliários. Segundo Ermínia Maricato[2], em 2009, a partir do lançamento do PAC II e do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, teve início um boom imobiliário de fortes impactos na dinâmica das cidades brasileiras. Em 2010, o PIB brasileiro atingiu o impressionante patamar de crescimento de 7,5%. Ocorre que o PIB do setor imobiliário foi de 11,7%. O investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45 vezes, passando de 1,8 bilhão de reais em 2002 para 79,9 bilhões de reais em 2011. Os subsídios governamentais foram generosos, atingindo 5,3 bilhões de reais em 2011. Com tal pujança e bonança, todo esboço da reforma urbana que se expressava no Estatuto da Cidade foi engavetado. O preço do imóvel disparou nos grandes centros urbanos: 153% em São Paulo (entre 2009 e 2012) e 184% no Rio de Janeiro (no mesmo período).
Praças da Juventude e tantos outros equipamentos urbanos e sociais foram se multiplicando ao longo das cidades brasileiras sem observar qualquer preocupação com a reorganização da ocupação do solo ou alteração dos custos de locomoção ou mesmo necessidade de reestruturar a oferta de serviços públicos. Os prefeitos não pensaram no futuro muito distante da próxima eleição.
A alegria contagiante que envolveu empreiteiras e todo setor da construção civil motivou o que muitos autores denominaram de “gentrificação” dos centros urbanos[3]. O termo, oriundo do inglês (gentrification), traduziria a intervenção em bairros, em especial centrais, modernizando velhas construções urbanas para ocupação de empresas e população de alta renda. Tal modernização arquitetônica e funcional desses territórios expulsou rapidamente a população de baixa renda, de maneira direta ou mesmo em função da disparada dos custos dos imóveis ou dos bens e serviços oferecidos naquelas localidades.
A nova dinâmica desenvolvimentista foi potencializada com os megaeventos esportivos programados para ocorrerem no Brasil a partir de 2013. Estudo do arquiteto Lucas Faulhaber, da Universidade Federal Fluminense (UFF), estima que 64 mil famílias foram alvo de remoções por obras de infraestrutura somente no Rio de Janeiro somente como preparação da Copa das Confederações. Os doze Comitês Populares da Copa estimam que 170 mil pessoas serão desalojadas em todo o país para a realização de grandes projetos urbanos no contexto dos megaeventos esportivos. De acordo com Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada e urbanista da Universidade de São Paulo (USP), a primeira violação está no direito à informação já que entidades de representação social têm dificuldade no acesso aos planos de ações governamentais. As indenizações e realojamentos propostos também podem ser vistos como violações já que o reassentamento em locais com menor disponibilidade de serviços e emprego viola o direito de moradia adequada, que inclui o acesso aos demais direitos humanos educação, saúde, trabalho. Roknik também atenta para a falta de reconhecimento ao direito de posse, assegurado pela legislação brasileira e por acordos internacionais firmados pelo Brasil.
Na esteira desta lógica desenvolvimentista desordenada, a opção pelos veículos individuais agravou a vida urbana. Em 2011, o número de automóveis em doze metrópoles brasileiras era de 11,5 milhões. Em 2011 quase dobrou, atingindo 20,5 milhões.
Maricato denuncia, por seu turno, a acomodação de entidades e lideranças que até então lideravam o movimento de reforma urbana em nosso país.
E é aqui que foco minha atenção neste artigo.
Nas últimas duas décadas, vivemos a implantação de um programa rooseveltiano, apoiado num pacto desenvolvimentista que tem num vértice o Estado orientador e concentrador de recursos públicos para investimento e que se desmembra em outros dois vértices: a formação de um potente mercado consumidor (via aumento real de salário mínimo, crédito subsidiado e programas de transferência de renda) e regulação e orientação para investimentos privados (através da “carta de investimentos” inscritos no PAC e empréstimos do BNDES).
Mas o programa roosveltiano brasileiro acrescenta duas novidades em relação ao modelo original: o financiamento de organizações populares e de representação de massas, como organizações não governamentais, articulações por direitos civis e sociais e centrais sindicais. Aqui está a origem para o que Maricato indica como acomodação de lideranças sociais.
O programa rooseveltiano também consolida uma antiga pretensão de governantes anteriores: a coalizão presidencialista, que cria uma forte intimidade governista e governamental entre Executivo e Legislativo. Mas, neste artigo, me concentro na análise da absorção das entidades de representação social no interior do aparelho de Estado.
No mundo sindical, o movimento foi o mesmo que o observado na Europa e que recebeu a denominação de neocorporativismo. O conceito sugere o ingresso das estruturas sindicais em arenas e fóruns estatais que definem a agenda e prioridades governamentais. Na prática, onde este fenômeno se instalou, ao invés de gerar real controle social – ou participação – da base sindical, acabou por gerar distanciamento da cúpula sindical em relação às suas bases. No Brasil, este fenômeno segue a passos largos. Em 2012, as centrais sindicais receberam repasses federais da ordem de 160 milhões de reais referentes ao imposto sindical, o dobro das transferências ocorridas em 2008, quando iniciaram os repasses. A maior parte dos recursos fica com as duas maiores centrais do País, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical. Neste ano, a CUT recebeu R$ 44,5 milhões até outubro, e a Força ficou com R$ 40 milhões. Os recursos representam entre 60% e 80% do orçamento total das centrais. Destaca-se, ainda, a regulamentação, no mesmo período, da participação de dirigentes sindicais nos conselhos de empresas estatais federais. O jeton pago a cada conselheiro chega a 8 mil reais, caso da Petrobrás. Há registros de jetons que variam de 3 mil reais (suplente do conselho da Breasilprev) a 15 mil reais (conselho da Funpresp). Há, ainda, a inversão do ideário sindical observado na gestão dos fundos de pensão que passaram a adquirir ações de bancos privados e até mesmo indústria bélica.
No campo da ONGs, a crise de financiamento externo aberto na segunda metade dos anos 1990 também gerou uma inflexão política. No século XXI espraiou-se como solução à sobrevivência dessas entidades da sociedade civil a assinatura de convênios com órgãos estatais. Na prática, os convênios terceirizaram para muitas organizações não-governamentais os serviços assistenciais antes executados pelo Estado.
Tal inversão foi programada pelo governo federal. No início da primeira gestão Lula, o participacionismo teve lugar certo. O programa Fome Zero foi entregue a lideranças católicas, expoentes da Teologia da Libertação nos anos 1980. A estrutura de gerenciamento do programa adotou a lógica da cogestão e foi compreendida como escola de formação de cidadãos para o controle de políticas públicas. O conceito de empoderamento foi fartamente utilizado neste período, que significaria ação coletiva ou participação coletiva em espaços privilegiados de decisões, ampliando o conceito de direito político. Assim, se orientaria pela superação de qualquer dependência social e dominação política. Era, obviamente, um discurso que confrontava o Estado patrimonialista. Contudo, já no final do primeiro ano de gestão já era visível a mudança de foco do núcleo dirigente. O programa foi entregue à gestão dos prefeitos, o que provocou profundo descontentamento em Frei Betto e Ivo Poletto que logo pediram afastamento das funções que assumiram no gerenciamento deste programa. As razões do afastamento não deixam dúvidas nos livros que os dois protagonistas publicaram meses depois de se afastarem do governo federal.
Outra iniciativa governamental foi a instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), um amplo conselho consultivo, composto por empresários e representação da sociedade civil para análise e proposição da agenda nacional. As entidades da sociedade civil foram unânimes em criticar a pouca efetividade de suas sugestões e a escuta privilegiada que o governo fazia das proposições empresariais.
Finalmente, esboçou-se um frágil mecanismo de participação no controle do orçamento federal e políticas sociais com a criação de Comitês Estaduais de elaboração do Plano Plurianual (PPA) federal e apoio para realização de conferências nacionais envolvendo uma ampla agenda temática. Foi a primeira e única tentativa, abortada no segundo ano de gestão, do governo federal criar mecanismos de controle social sobre a execução do seu orçamento.
Finalmente, o lugar dos conselhos de gestão pública (setoriais ou de direitos) e as conferências nacionais de direitos. Foram mais de 70 realizadas nos elaborado por Ana Claudia Chaves Teixeira, Clóvis Henrique Leite de Souza e Paula Pompeu Fiuza de Lima revelou o movimento errático desta novidade na gestão pública que tinha por objetivo introduzir elementos de cogestão na tomada de decisão daspolíticas sociais brasileiras[4]. Os autores realizaram um balanço das 74 conferências nacionais realizadas entre 2003 e 201052. Na maioria dos casos, este evidente esforço de mobilização social não recebeu nenhuma informação devolutiva pelo Estado, não se sabendo se suas resoluções foram incorporadas efetivamente nas ações ou estratégias de governo. Poucas conferências estão instituídas em lei, sendo sua vinculação com conselhos de gestão pública ou com processos de planejamento como o Plano Plurianual (PPA) é quase inexistente. O que se observa é a realização de eventos desconectados dos calendários de formulação governamental, dificultando a possibilidade de influência das propostas nos planos de ação estatal.
Em suma, vivemos no último período, no que tange à participação da cidadania no controle ou gestão de políticas públicas federais um duplo fenômeno desagregador.
De um lado, os canais institucionais de participação perderam lugar no processo de tomada de decisão e foram reduzidos à condição de meras formalidades burocráticas ou administrativas da lógica de Estado. De outro, a absorção das entidades de mediação social (estrutura sindical, organizações não-governamentais e entidades confessionais) pelo aparelho de Estado interditou a mediação de conflitos locais. Este era o papel fundamental desempenhado por tais entidades desde a década de 1980. Dada sua capilaridade e multiplicidade de territórios e segmentos sociais por elas atendidos, era possível criar um arranjo de demandas das populações mais marginalizadas ou tomadas pelo sentimento de injustiça social. Numa sociedade desigual como a brasileira, a coleta de demandas e frustrações e transformação em pauta unificada é essencial para os órgãos públicos orientarem sua agenda. Sem isto, as frustrações se multiplicam e se fragmentam numa miríade de lamentações e tensões cotidianos (até mesmo conflitos latentes).
Foi exatamente isto que se percebe a partir de 2013.
O primeiro alerta apareceu entre 18 e 19 de maio. Um boato dava conta da extinção do Programa Bolsa Família. Em três dias, 920 mil beneficiários sacaram o saldo em suas contas. A confiança nas pretensões do governo federal pareciam pouco sólidas.
Em seguida, em junho, explodem os protestos de rua que em três semanas levaram milhões de brasileiros a apresentarem um mosaico de demandas, pulverizadas e fragmentadas em cartazes que expressavam desejos pessoais, no máximo grupais.
Os governantes se assustaram. Não compreendiam o que se passava nas ruas. Compreensível. Justamente porque as ruas expressaram, em síntese, o confronto entre o projeto de Governo e os projetos de parte da sociedade que não possui canal de expressão há pelo menos uma década.
As cidades tornam-se o locus  central deste descompasso.
Vivemos um projeto desenvolvimentista executado à revelia das populações menos abastadas. Um projeto conduzido por elites políticas e econômicas. Algo que remonta à tradição política e conformação das políticas públicas de nosso país.
Os governantes se assustaram – e ainda se assustam – com o grito polifônico das ruas. Não entendem o que ocorreu após seus esforços para mudar o país e coloca-lo na posição de potência econômica mundial. Não entendem porque, em última instância, não estiveram nas ruas. Não dialogaram. E interditaram as possibilidades de vida e projetos de família. Tutelaram sonhos.
Se ao menos tivessem lido Amartya Sen......



[1] Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade, São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Páginas 34 e 36.
[2] Cf. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!, In MARICATO, Ermínia et al. Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013, p. 23 e seguintes.
[3] O termo gentrification deriva de "gentry" e do francês arcaico "genterise" que significa "de origem gentil, nobre". A expressão da língua inglesa gentrification foi usada pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass, em 1964, ao analisar as transformações imobiliárias em determinados distritos londrinos. Outro autor que se tornou referência nos estudos do fenômeno foi o geógrafo britânico Neil Smith, que identificou os vários processos de gentrificação em curso nas décadas de 1980 e 1990.
[4] Cf. TEIXEIRA, Ana Cláudia; SOUZA, Clóvis Henrique Leite & LIMA, Paula Pompeu Fiuza. “Arquitetura da
Participação no Brasil: uma leitura das representações políticas em espaços participativos nacionais”.
Texto para Discussão 1735, Rio de Janeiro: IPEA, 2012. Originalmente apresentado no 35º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós‐graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu, em outubro de 2011, no Grupo de Trabalho (GT) Controles Democráticos e Legitimidade.

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