quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Entrevista: Gera Soares fala sobre os índios Pankararu e Pataxó, no Vale do jequitinhonha

                      

Indígenas e a experiência do bem viver por Geralda Chaves Soares, que conta a história e atual situação dos indígenas Pankararu e Pataxó na Aldeia Cinta Vermelha Jundiba.

O brinco de artesanato indígena, os cabelos negros e o timbre de voz baixo e constante não deixam dúvidas de que ela não só apoia a causa indígena, mas a vive ela mesma, na luta por terra e pela preservação da cultura desses povos, alguns já dizimados e outros, como os de Araçuaí (MG), lançando raízes para que não se distanciem das suas origens. Numa tarde de muito calor, durante uma longa e prazerosa conversa, a reportagem ouviu Geralda Chaves Soares, a Gêra, sobre a história e atual situação dos indígenas Pankararu e Pataxó na Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, que fica no município de Araçuaí. 

Gêra, que é pedagoga e especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero, Raça e Etnia, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), recebeu a reportagem na casa da sua irmã, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. 

No Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Belo Horizonte (MG), ela também trabalhou durante anos, foi quando conheceu a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), utilizada por um período como prisão dos índios durante a ditadura militar, bem como o Reformatório Krenak, em Resplendor, também em Minas, com o mesmo objetivo. Ao lado dos Maxakali, que são cerca de 1.500 no estado, Gêra viveu por alguns anos. Nessa ocasião, aprendeu muito da cultura e espiritualidade indígenas. 

Acompanhe a nossa conversa com Gêra.

Como está organizada a Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, em Araçuaí?
São sete famílias, cerca de 30 pessoas. A aldeia se chama Cinta Vermelha Jundiba porque Cinta Vermelha é o protetor espiritual dos Pankararu e Jundiba é uma árvore sagrada dos Pataxó, entorno da qual há uma série de mitos contados e recontados pelo pajé. Há cinco casas redondas, que foram construídas com a ajuda dos Pataxó do sul da Bahia, com alvenaria e palha trazidas de lá, após eles terem construído casinhas de barro batido, com as próprias mãos. Cada casa, além de moradia, tem outra função na aldeia. Entre elas é interessante falar sobre a Casa do Segredo, onde o pajé conversa e aconselha; e a Escola Indígena, com professores indígenas que vão, periodicamente, estudar na Universidade Federal de Minas Gerais. O ensino primário eles fazem na aldeia, mas depois as crianças precisam sair para estudar. Alguns jovens chegaram a cursar faculdade. Na maioria das vezes, são cursos ligados à agricultura ou biologia. Um projeto ainda em germe é o da Casa de Saúde Cura e Harmonia, uma tentativa de recuperar as curas indígenas e aprender também da sabedoria da região. Outra característica é a de que todos trabalham dentro da aldeia, como professores, agentes de cultura ou com artesanato.


Como os indígenas Pankararu e Pataxó chegaram a Araçuaí?
Eles são migrantes. Aqui, os índios eram os Borum, ou seja, os homens verdadeiros, que foram escravos durante a ocupação do estado. Os Pankararu vieram de Pernambuco; e os Pataxó migraram do sul da Bahia. A família do pajé, Domingos, resolveu partir após perder uma criança, porque eles moravam numa aldeia muito grande e longe da cidade, sem nenhuma assistência médica. Ambas as etnias saíram em busca de terra e um lugar para melhor viver e dar continuidade às suas culturas. Mas esses povos se encontraram na Fazenda Guarani, em Carmésia, no frio da Serra do Cipó, cerca de cinco horas de Belo Horizonte. Lá, os filhos começaram a se relacionar entre eles e, então, perceberam que podiam conviver e compartilhar seus saberes. Vieram para cá em 1994, fugindo do frio e com uma proposta de começar uma aldeia diferente, com outras normas e orientações. 


Quais são essas normas que caracterizam a aldeia?
Os indígenas definiram que o cacique é Pankararu e o pajé, Pataxó. Assim, os ritos e as histórias dos dois povos ficam preservados. Nos últimos anos, a partir da experiência começada na Bolívia e em outros países latino-americanos, eles trabalharam para a cultura do bem viver e, com os saberes de cada uma das etnias, definiram quais são os passos para esse bem viver dentro da aldeia. Outra questão se refere ao casamento e à integração dos jovens, que não podem se casar com não indígenas ou trabalhar fora do espaço da aldeia. Se acontecer de um jovem se apaixonar por alguém fora e quiser se casar, ele perde os direitos do território, mesmo podendo continuar frequentando a aldeia. Essa foi uma maneira que eles encontraram para manter as tradições e que todos os membros tenham formação e consciência do ser índio. A educação indígena para a coletividade e a não adesão a outras religiões que não sejam as aprendidas com os seus antepassados também fazem parte das regras na aldeia. Assim, eles evitam participar de cultos ou celebrações das igrejas e realizam, com mais frequência, os seus próprios ritos.

Onde as etnias Pankararu em Pataxó estão presentes, além da aldeia no Jequitinhonha?
Os Pataxó, depois do massacre dos anos 1950, em que muitos indígenas foram expulsos de suas aldeias no sul da Bahia, se dispersaram. Eles têm uma aldeia no Guarani, em Carmésia, uma em Itapecerica, no sul de Minas e outra no Rio Doce.  Os Pankararu estão em Pernambuco e na Favela Real Parque, ao lado do bairro Morumbi, em São Paulo, onde há cerca de 3 mil indígenas. Eles migraram de Pernambuco para São Paulo e trabalham como pedreiros, porteiros, vendedores. Quem quiser conhecer a situação deles pode entrar em contato com a Associação SOS Pankararu, muito forte e atuante na capital paulista. 

Como foi o processo de expulsão dos índios em Minas Gerais, principalmente dos Borum?
O Rio Jequitinhonha era todo navegável até a cidade de Itinga. Com o domínio português crescendo e, diante da resistência dos índios Borum no Rio Doce, o rei de Portugal resolve ocupar essa região e, no dia 13 de maio de 1808, declara guerra aos índios. Eles tinham o objetivo de acabar com os índios, dar proteção aos colonos e distribuir as terras. Os Maxakali, nessa época, já estavam trabalhando com um militar, o José Pereira Moura, porque eram mais maleáveis e acabaram cedendo para permanecer ali. Recentemente, os Maxakali me contaram que se lembram dos seus antepassados chegando pelo Rio Jequitinhonha sobre casca de árvores e serem contratados como soldados e canoeiros. O objetivo era que eles mostrassem aos colonizadores onde estavam os Borum. Mas, depois, os soldados da coroa começaram a atacar as mulheres Maxakali, e eles romperam com as tropas e começaram a descer o Jequitinhonha em direção à mata, onde eles moram até hoje, no município de Santa Helena. São mais de mil indígenas que vivem em áreas pequenas, cortadas por fazendas de gado, porque o que se estabeleceu na região foi o latifúndio. Importante lembrar que a guerra alcançou seu objetivo e dispersou os indígenas, e criando divisões entre as etnias.

Como os portugueses conseguiram vencer a guerra?
Além de terem armas, eles utilizaram os Maxakali para alcançar seus objetivos. Por exemplo, eles obrigavam os Maxakali a roubar as crianças borum e vendiam essas crianças como escravas. Os Borum, para se vingarem, roubavam também as crianças maxakali. E quem se beneficiava eram sempre os fazendeiros. Essa reviravolta desestruturou os indígenas. Eles eram donos da terra, depois, com a declaração de guerra, viraram fugitivos. E, se havia resistência e alguém conseguia capturar um índio, ele ficava dez anos na fazenda para aprender a língua, aprender uma religião e se comportar civilizadamente. Para eles, que eram guerreiros, isso era uma violência ainda maior. As mulheres serviam de escravas sexuais ou empregadas domésticas nas fazendas. Depois dessa geração escrava, eles ficaram como agregados das fazendas e, em algumas delas, ainda hoje só os donos não são parentes de ninguém, o que mostra que as terras foram ocupadas. Os que fugiram das fazendas conseguiram virar posseiros de pequenas propriedades, mas com o crescimento do latifúndio, eles também foram expulsos e começaram a ocupar as periferias dos vilarejos. Só em 1850 veio a primeira lei de terras que decretou que só era dono da terra quem tinha documento. Mas o documento devia ser retirado no Rio de Janeiro, e só os grandes latifundiários conseguiam. Assim, os pequenos foram sendo totalmente expulsos. Além disso, havia a lei da mestiçagem, que obrigava as índias a se casarem. 

E sobre a dificuldade com a água, que é um problema em toda a região do Vale?
A área de aldeia Cinta Vermelha Jundiba está na beira do Rio Jequitinhonha, ainda assim, eles não têm acesso, pois o rio fica embaixo e os indígenas não conseguem levar a água para cima. Um caminhão pipa abastece a aldeia diariamente, mas há muita dificuldade para cultivar, por exemplo. Por esse motivo, a renda principal ainda é o artesanato. Mesmo vivendo esse drama comum da região, o clima é muito parecido com o de suas aldeias em Pernambuco e na Bahia, o que facilitou a adaptação. A questão da seca é muito séria. O Vale do Jequitinhonha já foi região de floresta e hoje está num processo de desertificação. Os indígenas têm objetivo de preservação e resgate da área em que estão e daquela que sonham em ocupar.

E sobre a posse da terra? A aldeia está demarcada?
O laudo antropológico já foi feito, mas a terra ainda não foi demarcada. Os indígenas, por iniciativa própria, começaram há alguns anos um financiamento para comprar a terra, mas depois viram que pagar esse financiamento seria impossível. Eles também estão esperando a ampliação do território para plantar e para a construção de uma grande escola, na qual possa vir estudar indígenas de outras etnias. É um sonho. Assim, querem construir um modo de viver que não destrua as tradições, sobretudo o contato com a natureza. Eles receberam uma verba para comprar a terra, mas a Funai (Fundação Nacional do Índio) não autorizou porque afirmou que, para que seja identificada como terra indígena, é preciso passar por todos os processos legais antes e não sabemos se a verba estará garantida.

Você contou sobre a experiência do bem viver. Como foi esse processo na aldeia?
Em fins de 2011, iniciou-se uma nova discussão a respeito do mundo em que vivemos, tomando como ponto de partida o movimento indígena e suas conquistas em alguns países da América Latina. Assim, iniciaram a discussão sobre o mundo em que vivemos e o mundo que estamos construindo. Eles ilustraram essas realidades com duas árvores, a chamada árvore do capitalismo e a árvore do bem viver, com as consequências de cada uma para os indígenas e para toda a humanidade. Com essa experiência, despertaram para a criação de formas de construir o bom caminho, no qual todos estão conectados e são importantes na busca de um mundo onde haja futuro para o planeta e para todos os que dele fazem parte. 

Fonte: Entrevista a Nayá Fernandes , publicada em 20/04/2015, no site
  www.paulinas.org.br/familia-crista/pt-br/?system=news&id=9957&action=read

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